domingo, 5 de agosto de 2012

Patrões e patroas sem-noção

RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA
Você, que não perde um capítulo da novela do mensalão e torce pela condenação de todos os vilões, já parou para pensar se existe uma Carminha em seu íntimo? Lembre que o exercício da cidadania começa em casa, ao acordar para o café.
Você é uma patroete ou patrão sem-noção, que desrespeita as empreguetes – ou valoriza o trabalho de quem limpa, cozinha, lava e passa para você e sua família?
Não faz sentido discursar contra a corrupção na aula de pilates ou no salão de beleza e, durante o alongamento e a escova progressiva, falar mal do “traste” que você mantém em casa, usando a linguagem da novela das 9, Avenida Brasil. Na “liga das patroas” da novela das 7, Cheias de charme, o uso da língua ferina contra as empregadas é mais que um passatempo, é um vício.
Se Zé Dirceu & Cúmplices precisam ser presos para dar exemplo e moralizar a política, como disciplinar as Carminhas soltas e impunes por aí? E olha que Carminha é emergente e já fez de tudo. O Brasil está cheio de Sandrinhas, Therezinhas, Ruthinhas (incluo meu nome para não fulanizar) que nunca fritaram um ovo, jamais fazem sua cama ou lavam suas calcinhas, não servem uma mesa, não lavam a louça e nunca usaram um aspirador de pó ou uma enceradeira. Elas têm horror a detergente e desperdiçam boa parte da vida procurando poeira para dar bronca. Humilham as empregadas domésticas fixas – um luxo no mundo moderno e civilizado. Quem já morou na Europa sabe.
Quando Nina começou a se vingar de Carminha, invertendo os papéis, a novela ficou meio chata. Na voz e nos gestos de Nina, as barbaridades cotidianas se tornam caricaturais, inverossímeis. Antes, tudo estava em seu devido lugar: sininho, exploração, chiliques, maus-tratos. Carminha era sem dúvida mais convincente no papel de patroa perua cheia de grana.
Se você não é uma Carminha, certamente conhece uma. Tive uma amiga de esquerda em São Paulo com atitudes singulares. No quarto, ao lado de sua cama, ela apertava a campainha ao acordar e lá vinha a empregada com bandeja e o café da manhã preparado. A doméstica dormia num anexo da casa, era obrigada a usar uniforme com touquinha. Servia almoço e jantar. Sentava-se na cozinha para ser chamada por um sininho várias vezes durante as refeições.
Conversei com Léa Silva, conhecida como Tia Léa, dona de uma laje no Vidigal, favela pacificada do Rio de Janeiro, onde serve refeições para estrangeiros. Há 38 anos ela trabalha em “casa de família”, desde adolescente. E já penou com Carminhas e Chayenes. “Sabe o que é levar na cama da patroa uma bandeja com café e ela jogar tudo longe, as coisas se esparramarem na cama, porque ela não gostou de alguma coisa?”, pergunta. Tia Léa detesta o som do sininho. Acha campainha menos desagradável.
Não faz sentido discursar contra a corrupção e tratar as empregadas como na novela Avenida Brasil
O macarrão com salsicha que Nina serviu para Carminha é realidade em muitos lares. “Comida de empregada era uma, comida dos patrões era outra.” Numa casa, empregada era proibida de comer as “partes nobres” do frango. “Para nós ficavam as asas, o pescoço e os pés da galinha. Um dia, eu desfiei a asa bem fininha e fiz um empadão para mim e para as outras empregadas. Para quê! A madame chegou e não gostou nada. Acabou pegando o empadão para ela.” Às vezes, não é só a comida que é diferente. Os pratos, os talheres e os copos são separados. Como se patroetes tivessem nojo das empreguetes.
Tia Léa era acordada de madrugada para atender os amigos da patroa. E o quarto de serviço? “Cheio de entulho”, diz. “Aquele chuveiro frio da Nina na novela... é assim em muitos lugares. Eu esperava a patroa sair para esquentar água na panela e tomar banho de baldinho. Colchão costuma ser horroroso. Roupa de cama é o resto do resto.”
Um dos autores de Cheias de charme, Filipe Miguez, me disse que tenta mostrar “de maneira leve” as agressões e irregularidades de uma relação típica de Terceiro Mundo. A patroa Chayene joga sopa na cara da empregada, mas é denunciada na polícia. Em outra casa, uma menina, filha da empregada que morreu, trabalha sem carteira assinada. “No Sudeste, é menos comum, mas no Norte e Nordeste isso ainda acontece muito. A garota cresceu ali, tem casa e comida, e a mentalidade é de casa-grande e senzala”, diz Filipe.
Se é para encher a boca com cidadania, vamos convocar o Supremo para julgar se você é uma patroa cidadã? E não adianta pedir desmembramento do processo para se safar. Sua empregada tem carteira assinada? Direito a INSS, férias e 13º salário? Quantas horas trabalha por semana? Você a chama com sininho e campainha? Grita? Está sempre insatisfeita? Controla o que ela come? As dependências têm dignidade? Preocupa-se com sua saúde ou apenas reclama que ela está doente e deixou você na mão?
Faça esse teste simples. Dependendo do resultado, quem sabe você precisa de uma reviravolta didática em sua vida.

RUTH DE AQUINO - 03/08/2012

Nota da AB:
Transcrevi o texto acima porque é exatamente como penso. Antes de fazer pose de cidadão indignado com a corrupção que assola nosso país, todo mundo deveria fazer o dever de casa, literalmente.
AB

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